segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Sonhar também muda o mundo, por Edilene Toledo


Quem já não sonhou com um mundo diferente, no qual fosse pos­sível o máximo de liberdade com o máximo de solidariedade? Os anarquistas acreditavam, e acreditam ainda, que essa esperança não e uma utopia: ela pode se tornar realidade.

Eles gostam de dizer que o ideal existe desde a Antiguidade, ou seja, desde que há luta pela liberdade. Mas a doutrina só se tor­naria movimento organizado no século XIX, na Europa. Na pauta, a crítica à sociedade industrial, aos males do capitalismo e à sua indiferença diante do sofrimento humano.

A palavra anarquia, usada frequentemente para designar de­sordem e confusão, vem do grego e significa "sem governo", isto é, o estado de um povo sem autoridade constituída. Do mesmo ho­rizonte de significado nasce o anarquismo, doutrina politica que prega que o Estado é nocivo e desnecessário e existem alternativas viáveis de organização voluntária. 

Para a verdadeira libertação da sociedade seria necessário, ainda, destruir o capitalismo e as igrejas. Os anarquistas opunham-se à participação nas eleições e aos parlamentos, pois considera a democracia liberal uma farsa, negando qualquer forma de organização hierarquizada.

A nova sociedade seria uma rede de relações voluntárias entre pessoas livres e iguais, em equilíbrio natural entre liberdade e ordem não imposta, mas garantida pela cooperação voluntaria. Eliminados o Estado centralizado, o capitalismo e as instituições religiosas, afloraria a verdadeira natureza humana e as pessoas voltariam a assumir suas responsabilidades comunitárias. O futuro anarquista seria feito de um conjunto de pequenas comunidades descentralizadas, autogeridas e federadas, que a livre experimentação modificaria pouco a pouco. 

O francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) foi o primeiro a organizar as ideias do anarquismo. Em seu texto “O que é a propriedade?” (1840), escreveu que a política era a ciência da liberdade, que o governo do homem sobre o homem, em qual forma, era opressão, e que a sociedade só atingiria a perfeição na união da ordem com a anarquia.

Ainda no século XIX, o anarquismo ganha adeptos em todo o mundo [...]. O russo Mikhail Bakunin (1814-1876) defendia que a futura organização da sociedade deveria ser realizada de baixo para cima, pela livre associação. Bak e outros anarquistas rivalizaram com Karl Marx sugerindo que o socialismo seria tão despótico quanto outras formas de Estado. Mais tarde, Emma Goldman (1869-1940), judia russa emigrada os Estados Unidos, famosa por sua militância, fez duras críticas aos rumos dados pelos bolcheviques à Revolução Russa em função da centralização estatal e do autoritarismo, que teriam paralisado a iniciativa e o esforço individuais.

Os anarquistas russos, em aberta oposição aos que consideravam uma ditadura distante dos ideais libertários, passaram a ser perseguidos e suas atividades foram proibidas já poucos meses após a Revolução de Outubro. Em 1920, grande parte dos membros do Exército Revolucionário Insurrecional, liderado pelo anarquista Nestor Makhn, fuzilada pela Cheka, a polícia responsável por re­primir atos considerados contrarrevolucionários. Em poucos anos, os anarquistas da Rússia foram quase todos mortos, aprisionados, banidos ou re­duzidos ao silêncio. 

Os anarquistas incentivavam a luta dos traba­lhadores contra a exploração capitalista através do apelo para diversas formas de ação, como greves, boicotes, comícios, passeatas, fundação de sindi­catos, denunciando o que consideravam ações repressoras da burguesia e do Estado. Embora tenha conquistado corações e mentes em diferentes clas­ses sociais, o anarquismo se difundiu, sobretudo entre os trabalhadores pobres urbanos, e foi um elemento importante em seu processo de auto-organização e agregação social, recreativa e cultu­ral. 

A circulação das ideias anarquistas se dava por meio de campanhas, comícios, pela imprensa e em publicações, mas também com a organização do tempo livre em eventos como teatro, piqueniques e festas. Assim, os anarquistas transformavam, ou ao menos abalavam, uma mentalidade consolida­da em vários países, segundo a qual trabalhadores pobres deviam ficar fora da política.

Um dos livrinhos mais famosos de propagan­da anarquista foi “Entre camponeses, diálogo sobre a anarquia”, do italiano Errico Malatesta (1853-1932), publicado em Florença, em 1884. Nele se lia a con­versa entre dois camponeses, Giorgio, um jovem anarquista, e Beppe, um velho amigo de seu pai. Beppe tenta dissuadir Giorgio, argumentando que a política era coisa para os senhores, e que o tra­balhador tinha que pensar em trabalhar e fazer o bem, assim viveria tranquilo e na graça de Deus. No fim, é o velho Beppe quem sai convertido ao anarquismo.

Malatesta nasceu no sul da Itália, em uma família rica. Coerente com suas ideias, distri­buiu as terras que herdou aos camponeses. Foi um dos anarquistas mais influentes em todo o mundo, inspirando inúmeros militantes e trabalhadores. Por isso foi duramente perseguido pelo regime fascista de Benito Mussolini, desde sua ascensão ao poder em 1922.

Embora os anarquistas concordassem com os objetivos que queriam atingir, eles divergiram muito sobre os meios para alcançá-los. Na década de 1890 houve grandes atos de violência dos anar­quistas no cenário mundial: foram mortos um rei da Itália, uma imperatriz da Áustria, um primeiro-ministro da Espanha, um presidente da França e um dos Estados Unidos.

Mas a maioria dos anarquistas recusou essas ações individuais e violentas. Alguns tentaram experimentar a organização libertária formando pequenas comunidades autogeridas que, em ge­ral, tiveram vida curta e difícil. Outros organiza­ram insurreições. Muitos se dedicaram à forma­ção e à participação nos sindicatos de trabalha­dores, que consideravam um espaço privilegiado para a difusão da ideia anarquista e um exercício importante de autogestão. Houve os que investi­ram na educação, criando escolas alternativas que visavam formar crianças autônomas, e na arte en­gajada, como o teatro popular e a literatura com conteúdos políticos.

No Programa Anarquista, escrito por Malatesta em 1903, ele argumentava que os anarquistas que­riam mudar radicalmente o mundo, substituindo o ódio pelo amor, a concorrência pela solidarie­dade, a busca exclusiva do próprio bem-estar pela cooperação, a opressão pela liberdade. "Queremos que a sociedade seja constituída com o objetivo de fornecer a todos os meios de alcançar igual bem-estar possível, o maior desenvolvimento possível, moral e material. Desejamos para todos pão, li­berdade, amor e saber", escreveu Malatesta na conclusão do programa. 

Já nos anos 1920 e 1930, o movimento anarquis­ta perdeu força, com o surgimento dos partidos comunistas e o aumento da presença do Estado nas sociedades ocidentais, fechando o ciclo do chamado anarquismo histórico. Na Espanha, em Aragão e na Catalunha, os anarquistas consegui­ram realizar uma verdadeira revolução durante a guerra civil: operários e camponeses se apode­raram das terras e das indústrias, estabeleceram conselhos de trabalhadores e fizeram a autogestão da economia. Essa coletivização teve considerável sucesso por algum tempo e, embora derrotada, foi a experiência anarquista mais importante da história e ficou na memória dos libertários como a prova concreta de que a anarquia era possível. 

A partir dos anos 1960, quando se confirmaram suas previsões sobre os perigos da centralização do poder nos países socialistas, houve uma retomada do anarquismo em todo o mundo. Suas ideias li­bertárias influenciaram movimentos sociais, como o estudantil, o feminista, o ecológico e o hippie, penetrando com força também nas universidades. Em tempos de contestação do capitalismo e da capacidade dos governos de representar suas so­ciedades, os ideais anarquistas parecem mais vivos do que nunca.

Embora difícil de implementar, a proposta anarquista contou diversos pensadores e influenciou vários países(1). Por Edilene Toledo, professora da Universidade Federal de São Paulo para a Revista De História da Biblioteca Nacional no. 95, Agosto 2013

(1) - O link com a matéria sobre o assunto “O Anarquismo mundo afora”, está em fase de pesquisa e montagem no blog.