sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Os Black Blocs sem máscaras

Investigar está na alma do jornalismo. Mas a investigação jornalística tem uma natureza distinta da policial... Quando saem a cam­po atrás de suas fontes, nossos repórteres estão em busca de conhecimento. Querem saber, e não prender, julgar ou condenar - todas essas atribuições nobres da polícia e da Justiça.

Foi esse espírito que moveu o repórter Leonel Ro­cha, da coluna de Felipe Patury em Brasília, ao inves­tigar os ativistas que, escondidos atrás de máscaras, promovem a violência em protestos e ficaram conhe­cidos como Black Blocs. Em junho, Leonel começou a con­versar com ativistas ligados a grupos de Black Blocs. Ele noticiou a realização de um treinamento do grupo em Cáceres, em Mato Grosso, e pediu para acompanhar o próximo. No final de outu­bro, recebeu o convite para testemunhar o encontro rea­lizado no fim de semana de Finados, no interior de São Paulo. O grupo pediu que Leonel não revelasse o local exato e só publicasse nomes e fotografias dos ativistas que autorizassem.

Um dos focos da investigação da PF - há duas semanas oficialmente no com­bate ao vandalismo urbano - é se os Black Blocs recebem algum tipo de apoio financeiro internacional. Na re­portagem dizem a ÉPOCA que sim, eles recebem. Entre os financiadores apontados por eles estão movimentos anarquistas e enti­dades ligadas à Igreja Católica - as associações que responderam a ÉPOCA negaram o apoio...

Um sítio a 50 quilômetros de São Paulo abriga um centro de trei­namentos para a minoria que adotou o quebra-quebra como forma de manifestação política e ficou conhecida como Black Bloc. Dois homens na faixa dos 40 anos vigiavam o portão, fechado com corrente e cadeado. Se não fosse por eles, um observador menos atento pode­ria acreditar que o local, carente de ma­nutenção, está abandonado. Não tem ani­mais, horta nem pomar. Não tem trator nem enxadas. É usado somente nos finais de semana, como espaço para reuniões e ensino de técnicas de resistência à polícia. Apenas uma das três casas erguidas há 50 anos está em condições de uso. As outras duas não têm água nem luz. Servem de depósito. No primeiro final de semana de novembro, quando se comemorou o Dia de Finados, pouco mais de 30 pessoas se reuniram nesse sítio para organizar uma nova onda de protestos contra tudo e contra todos - a presidente Dilma Rous-seff, políticos em geral, bancos, empresas de transporte, telefonia e comunicação.

Fui admitido no encontro como repórter de ÉPOCA. O que vi ajuda a compreender quem são, o que querem e o que pensam os Black Blocs. Mais: des­mente a concepção vigente entre órgãos de segurança federais e estaduais. É voz corrente que eles não têm organização e aparecem nas manifestações como que por geração espontânea. Ao contrário, eles têm método, objetivos, um progra­ma de atuação e acesso a financiamento de entidades estrangeiras. Foram necessárias três semanas de negociação até que os ativistas me abrissem seus portões e me permitissem testemunhar seus treinamentos, debates e decisões. Antes, apresentaram exigên­cias e cobraram garantias. Para ter acesso ao encontro, tive de me comprometer a não revelar a localização do sítio, só identificar na reportagem os ativistas que se dispusessem a declarar seus no­mes e profissões e a tratar a todos com respeito. Em nenhum momento soube o endereço do sítio. Marcamos um en­contro no vão livre do Museu de Arte de São Paulo (Masp), onde os Black Blocs se reúnem em dias de manifestação na capital paulista. De lá, segui com dois guias até o sítio numa Kombi. Uma parte do caminho foi feita em estrada de terra.

As primeiras horas foram para su­perar desconfianças. No começo, fui chamado de "senhor". Rompi parte das resistências com a ajuda de um antigo sindicalista. Ex-funcionário da Rede Fer­roviária Federal, o jornalista Leonardo Morelli coordena a ONG Defensoria Social, um braço visível e oficial que os apoia. Morelli me recebeu no sítio porque acredita que os "blockers" pre­cisam de visibilidade e reconhecimento dos meios de comunicação. Só por meio deles, diz ele, podem superar a rejeição de quase toda a sociedade, que condena o quebra-quebra característico das apa­rições dos Black Blocs. O termo, segundo eles, designa uma forma de atuação, não um grupo ou movimento organizado.

Aos 53 anos, Morelli é o mais velho do grupo. Participou de pastorais católicas de direitos humanos. Integrou o grupo que originou a Comissão Pastoral Operária. Militou com petistas como Luiz Gushiken (1950-2013), ministro da Secretaria de Comunicação Social do governo Lula, e o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh. Seu nome aparece em quatro relatórios dos órgãos oficiais de espionagem. Datado de 1987, um documento do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI) relaciona Morelli entre punks e anarco-sindicalistas. Segundo o texto, Morelli propunha "furar os pneus e quebrar os vidros dos ônibus" para parar São Paulo e provocar uma greve geral dos trabalhadores. "Eu já era Black Bloc nos anos 1980, antes de existir o movimento com esse nome", diz. Ele foi demitido da RFFSA por par­ticipar de uma greve nos anos 1980. No fim da década, foi anistiado e aposentado.

Agora, tenta influenciar os Black Blocs com novas causas. Ergue bandeiras am­bientais, denuncia os lixões e a conta­minação de áreas da periferia. Defende a desmilitarização das polícias, a libe­ração de biografias não autorizadas, o controle social das pesquisas científicas, combate o Marco Civil da Internet e cobra as renúncias dos governadores de São Paulo, Geraldo Alckmin, e do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral.

Os ativistas reunidos no interior pau­lista compartilham o credo anarquista de Morelli, mesmo com pouca informação sobre o tema. O mais jovem do grupo, com 17 anos, é um típico punk da periferia pau­lista, de cabelo moicano. Tenta concluir o ensino médio. Num dos últimos con­flitos, foi fotografado quebrando a pon­tapés uma vidraça de uma agência ban­cária. Distribuída por agências de notícia estrangeiras, a imagem rodou o mundo.

Pouco mais velho que ele, um rapaz de óculos diz ter lido textos anarquistas na internet e não compreender como todos de sua idade não aderiram ao movimen­to. Morador da periferia paulistana, conta que cresceu assistindo a amigos e vizinhos apanharem da polícia. Nunca votou e afir­ma que jamais escolheria os candidatos preferidos por seus pais na eleição presi­dencial de 2010 - Dilma Rousseff e José Serra. Na noite de 26 de outubro, teste­munhou o espancamento do comandante da Polícia Militar de São Paulo, coronel Reynaldo Rossi. Relata que Rossi fora "marcado" pelos "blockers". A ordem era bater nele sem acertar a cabeça, para evi­tar o risco de morte. "Vi muito amigo ser espancado pela polícia lá no meu bairro. É assim que vamos responder daqui para a frente", diz o Black Bloc com pinta de nerd.

O grupo comprou a Kombi que me conduziu e um Jeep Willys com dinheiro que recebeu de entidades nacionais e estrangeiras. Segundo Morelli, desde o início deste ano, já ingressaram nos co­fres da Defensoria Social € 100 mil. Ele afirma que o dinheiro foi repassado pelo Instituto St Quasar, uma ONG ligada a causas ambientais. Morelli também cita entre seus doadores organizações como as suíças La Maison des Associations Socio-Politiques, sediada em Genebra, e Les Idées, entidade ligada ao deputa­do verde Jean Rossiaud. Procurados por ÉPOCA, ambos negaram ter enviado di­nheiro. Morelli diz que a Defensoria So­cial também foi abastecida pelo Fundo Nacional de Solidariedade, da CNBB. A CNBB também negou os repasses. Mo­relli ainda relacionou entre seus conta­tos os padres católicos Combonianos e a Central Operária Boliviana.

O dinheiro financia os treinamentos dos militantes, como o ocorrido no fim de semana de Finados e outro realizado em julho na cidade de Cáceres, em Mato Grosso. Nessas ocasiões, os ativistas são informados de que a precondição para ser Black Bloc é ter disposição para en­frentar a polícia. Em Cáceres, aprende­ram a se proteger das balas de borracha com escudos feitos com tapumes. Fo­ram orientados a formar paredes com os escudos para se defender em bloco, como as tropas de choque fazem hoje e, no passado, fizeram as falanges gregas e legiões romanas. Em Cáceres, havia rapazes que prestaram serviço militar. Ex-recrutas do Exército, eles ensinaram aos colegas Black Blocs o que aprende­ram na caserna. Em Cáceres e no inte­rior paulista, os ativistas tiveram aulas com o ex-militante do MST Paulo Ma­tos. Aos 36 anos, ele acumula 21 anos de militância. Participou de cinco invasões, foi preso, processado e ajudou a orga­nizar o assentamento mato-grossense Antônio Conselheiro, o maior do país. Deixou o MST quando passou a acre­ditar que alguns de seus companheiros eram corruptos. Conta que, ameaçado por eles, fugiu para a Bolívia, onde co­meçou a estudar medicina. Diz que tra­balhou como enfermeiro e aprendeu a fazer pequenas cirurgias. Carrega um kit com bisturi, agulha de sutura, pinça, tesoura e luvas para socorrer quem se fere no combate das ruas. "Somos gla­diadores sociais", afirma Paulo Matos. [...].

O discurso seduz gente como Daniela Ferraz, paulistana criada no complexo de favelas do Capão Redondo. Aos 31 anos, mãe de um filho que mora com o pai, ela cometeu dois assaltos e cumpriu cinco anos de prisão. "Tinha filho para criar e uma irmã criança para ajudar a criar. Não tive alternativa, e o desespero me levou a assaltar. Mas nunca me en­volvi com homicídios", diz. "Quando os corruptos poderosos roubam milhões, nada acontece. Quando o pobre assalta para comprar comida e fraldas para o filho, vai preso." Ainda cumprindo pena em liberdade, Daniela armou-se de paus e pedras para atacar agências bancárias. Agora, é conhecida como Dani, a Pan­tera dos Black Blocs. (Capa da revista)

Os Black Blocs me receberam em seu refúgio. Concederam entrevistas, mas não permitiram filmagens nem o uso de câmeras profissionais. Morelli e Matos aceitaram que eu os fotografas­se no sítio com o celular. Escolheram um cenário neutro, de forma a evitar a identificação do local. A meu pedido, fizeram outras imagens após o encon­tro do fim de semana, para ilustrar esta reportagem. Quem foi ao encontro de Finados ganhou um par de CDs. Eles contêm programas para sabotar redes de computadores de órgãos públicos e empresas privadas. Desenvolvidos por programadores vinculados à célula ca­rioca do grupo hacker Anonymous, esses programas já circulam na internet.


Os Black Blocs brasileiros seguem uma onda mundial. São uma manifestação tardia de um fenômeno que tem origem na Alemanha dos anos 1980 e, gradualmente, começou a aparecer nas manifestações de ruas pelo mundo. Primeiro, nos protestos antiglobalização dos anos 1990. Depois, como parte das mobilizações que se se­guiram à crise econômica de 2008. Agora, quebram vitrines e enfrentam a polícia no Brasil. O cientista político canadense e ati­vista Francis Dupuis-Déri, da Universidade de Québec, afirma que os Black Blocs são mais uma tática que um movimento político, mais uma demonstração de rua que uma ideologia. Envolveram-se em protestos no Canadá, na Grécia, na Es­panha e no Egito. "Estão se convertendonum fenômeno global, como a crise eco­nômica", diz Dupuis-Déri... Em dez anos, 10 mil foram presos, a maioria em protestos antiglobalização. A cadeia pune a violência e pode coibi-la, mas não ajuda a compreender o que eles querem, quem são, o que pensam, como se organizam - e, principalmente, quem os financia. Por João Gabriel de Lima e Hudson Corrêa para a revista Época no. 87, novembro 2013