Investigar está na alma do jornalismo. Mas a
investigação jornalística tem uma natureza distinta da policial... Quando saem
a campo atrás de suas fontes, nossos repórteres estão em busca de
conhecimento. Querem saber, e não prender, julgar ou condenar - todas essas
atribuições nobres da polícia e da Justiça.
Foi esse espírito que moveu o repórter Leonel
Rocha, da coluna de Felipe Patury em Brasília, ao investigar os ativistas
que, escondidos atrás de máscaras, promovem a violência em protestos e ficaram
conhecidos como Black Blocs. Em junho, Leonel começou a conversar com
ativistas ligados a grupos de Black Blocs. Ele noticiou a realização de um
treinamento do grupo em Cáceres, em Mato Grosso, e pediu para acompanhar o
próximo. No final de outubro, recebeu o convite para testemunhar o encontro
realizado no fim de semana de Finados, no interior de São Paulo. O grupo pediu
que Leonel não revelasse o local exato e só publicasse nomes e fotografias dos
ativistas que autorizassem.
Um dos focos da investigação da PF - há duas
semanas oficialmente no combate ao vandalismo urbano - é se os Black Blocs
recebem algum tipo de apoio financeiro internacional. Na reportagem dizem a ÉPOCA
que sim, eles recebem. Entre os financiadores apontados por eles estão
movimentos anarquistas e entidades ligadas à Igreja Católica - as associações
que responderam a ÉPOCA negaram o apoio...
Um sítio a
50 quilômetros de São Paulo abriga um
centro de treinamentos para a minoria que adotou o quebra-quebra como forma de
manifestação política e ficou conhecida como Black Bloc. Dois homens na faixa
dos 40 anos vigiavam o portão, fechado com corrente e cadeado. Se não fosse por
eles, um observador menos atento poderia acreditar que o local, carente de manutenção,
está abandonado. Não tem animais, horta nem pomar. Não tem trator nem enxadas.
É usado somente nos finais de semana, como espaço para reuniões e ensino de
técnicas de resistência à polícia. Apenas uma das três casas erguidas há 50
anos está em condições de uso. As outras duas não têm água nem luz. Servem de
depósito. No primeiro final de semana de novembro, quando se comemorou o Dia de
Finados, pouco mais de 30 pessoas se reuniram nesse sítio para organizar uma
nova onda de protestos contra tudo e contra todos - a presidente Dilma
Rous-seff, políticos em geral, bancos, empresas de transporte, telefonia e comunicação.
Fui admitido no encontro como repórter de
ÉPOCA. O que vi ajuda a compreender quem são, o que querem e o que pensam os
Black Blocs. Mais: desmente a concepção vigente entre órgãos de segurança
federais e estaduais. É voz corrente que eles não têm organização e aparecem
nas manifestações como que por geração espontânea. Ao contrário, eles têm
método, objetivos, um programa de atuação e acesso a financiamento de
entidades estrangeiras. Foram necessárias três semanas de negociação até que os
ativistas me abrissem seus portões e me permitissem testemunhar seus
treinamentos, debates e decisões. Antes, apresentaram exigências e cobraram
garantias. Para ter acesso ao encontro, tive de me comprometer a não revelar a
localização do sítio, só identificar na reportagem os ativistas que se
dispusessem a declarar seus nomes e profissões e a tratar a todos com
respeito. Em nenhum momento soube o endereço do sítio. Marcamos um encontro no
vão livre do Museu de Arte de São Paulo (Masp), onde os Black Blocs se reúnem
em dias de manifestação na capital paulista. De lá, segui com dois guias até o
sítio numa Kombi. Uma parte do caminho foi feita em estrada de terra.
As primeiras horas foram para superar
desconfianças. No começo, fui chamado de "senhor". Rompi parte das
resistências com a ajuda de um antigo sindicalista. Ex-funcionário da Rede Ferroviária
Federal, o jornalista Leonardo Morelli coordena a ONG Defensoria Social, um
braço visível e oficial que os apoia. Morelli me recebeu no sítio porque
acredita que os "blockers" precisam de visibilidade e reconhecimento
dos meios de comunicação. Só por meio deles, diz ele, podem superar a rejeição
de quase toda a sociedade, que condena o quebra-quebra característico das aparições
dos Black Blocs. O termo, segundo eles, designa uma forma de atuação, não um
grupo ou movimento organizado.
Aos 53 anos, Morelli é o mais velho do grupo.
Participou de pastorais católicas de direitos humanos. Integrou o grupo que
originou a Comissão Pastoral Operária. Militou com petistas como Luiz Gushiken
(1950-2013), ministro da Secretaria de Comunicação Social do governo Lula, e o
advogado Luiz Eduardo Greenhalgh. Seu nome aparece em quatro relatórios dos
órgãos oficiais de espionagem. Datado de 1987, um documento do extinto Serviço
Nacional de Informações (SNI) relaciona Morelli entre punks e anarco-sindicalistas.
Segundo o texto, Morelli propunha "furar os pneus e quebrar os vidros dos
ônibus" para parar São Paulo e provocar uma greve geral dos trabalhadores.
"Eu já era Black Bloc nos anos 1980, antes de existir o movimento com esse
nome", diz. Ele foi demitido da RFFSA por participar de uma greve nos
anos 1980. No fim da década, foi anistiado e aposentado.
Agora, tenta influenciar os Black Blocs com
novas causas. Ergue bandeiras ambientais, denuncia os lixões e a contaminação
de áreas da periferia. Defende a desmilitarização das polícias, a liberação de
biografias não autorizadas, o controle social das pesquisas científicas,
combate o Marco Civil da Internet e cobra as renúncias dos governadores de São
Paulo, Geraldo Alckmin, e do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral.
Os ativistas reunidos no interior paulista
compartilham o credo anarquista de Morelli, mesmo com pouca informação sobre o
tema. O mais jovem do grupo, com 17 anos, é um típico punk da periferia paulista,
de cabelo moicano. Tenta concluir o ensino médio. Num dos últimos conflitos,
foi fotografado quebrando a pontapés uma vidraça de uma agência bancária.
Distribuída por agências de notícia estrangeiras, a imagem rodou o mundo.
Pouco mais velho que ele, um rapaz de óculos
diz ter lido textos anarquistas na internet e não compreender como todos de sua
idade não aderiram ao movimento. Morador da periferia paulistana, conta que
cresceu assistindo a amigos e vizinhos apanharem da polícia. Nunca votou e afirma
que jamais escolheria os candidatos preferidos por seus pais na eleição presidencial
de 2010 - Dilma Rousseff e José Serra. Na noite de 26 de outubro, testemunhou
o espancamento do comandante da Polícia Militar de São Paulo, coronel Reynaldo
Rossi. Relata que Rossi fora "marcado" pelos "blockers". A
ordem era bater nele sem acertar a cabeça, para evitar o risco de morte.
"Vi muito amigo ser espancado pela polícia lá no meu bairro. É assim que
vamos responder daqui para a frente", diz o Black Bloc com pinta de nerd.
O grupo comprou a Kombi que me conduziu e um
Jeep Willys com dinheiro que recebeu de entidades nacionais e estrangeiras.
Segundo Morelli, desde o início deste ano, já ingressaram nos cofres da
Defensoria Social € 100 mil. Ele afirma que o dinheiro foi repassado pelo
Instituto St Quasar, uma ONG ligada a causas ambientais. Morelli também cita
entre seus doadores organizações como as suíças La Maison des Associations
Socio-Politiques, sediada em Genebra, e Les Idées, entidade ligada ao deputado
verde Jean Rossiaud. Procurados por ÉPOCA, ambos negaram ter enviado dinheiro.
Morelli diz que a Defensoria Social também foi abastecida pelo Fundo Nacional
de Solidariedade, da CNBB. A CNBB também negou os repasses. Morelli ainda
relacionou entre seus contatos os padres católicos Combonianos e a Central
Operária Boliviana.
O dinheiro financia os treinamentos dos
militantes, como o ocorrido no fim de semana de Finados e outro realizado em
julho na cidade de Cáceres, em Mato Grosso. Nessas ocasiões, os ativistas são
informados de que a precondição para ser Black Bloc é ter disposição para enfrentar
a polícia. Em Cáceres, aprenderam a se proteger das balas de borracha com
escudos feitos com tapumes. Foram orientados a formar paredes com os escudos
para se defender em bloco, como as tropas de choque fazem hoje e, no passado, fizeram
as falanges gregas e legiões romanas. Em Cáceres, havia rapazes que prestaram
serviço militar. Ex-recrutas do Exército, eles ensinaram aos colegas Black
Blocs o que aprenderam na caserna. Em Cáceres e no interior paulista, os
ativistas tiveram aulas com o ex-militante
do MST Paulo Matos. Aos 36 anos, ele acumula 21 anos de militância.
Participou de cinco invasões, foi preso, processado e ajudou a organizar o
assentamento mato-grossense Antônio Conselheiro, o maior do país. Deixou o MST
quando passou a acreditar que alguns de seus companheiros eram corruptos.
Conta que, ameaçado por eles, fugiu para a Bolívia, onde começou a estudar
medicina. Diz que trabalhou como enfermeiro e aprendeu a fazer pequenas
cirurgias. Carrega um kit com bisturi, agulha de sutura, pinça, tesoura e luvas
para socorrer quem se fere no combate das ruas. "Somos gladiadores
sociais", afirma Paulo Matos. [...].
O discurso seduz gente como Daniela Ferraz,
paulistana criada no complexo de favelas do Capão Redondo. Aos 31 anos, mãe de
um filho que mora com o pai, ela cometeu dois assaltos e cumpriu cinco anos de
prisão. "Tinha filho para criar e uma irmã criança para ajudar a criar.
Não tive alternativa, e o desespero me levou a assaltar. Mas nunca me envolvi
com homicídios", diz. "Quando os corruptos poderosos roubam milhões,
nada acontece. Quando o pobre assalta para comprar comida e fraldas para o
filho, vai preso." Ainda cumprindo pena em liberdade, Daniela armou-se de
paus e pedras para atacar agências bancárias. Agora, é conhecida como Dani, a
Pantera dos Black Blocs. (Capa da revista)
Os Black Blocs me receberam em seu refúgio.
Concederam entrevistas, mas não permitiram filmagens nem o uso de câmeras
profissionais. Morelli e Matos aceitaram que eu os fotografasse no sítio com o
celular. Escolheram um cenário neutro, de forma a evitar a identificação do
local. A meu pedido, fizeram outras imagens após o encontro do fim de semana,
para ilustrar esta reportagem. Quem foi ao encontro de Finados ganhou um par de
CDs. Eles contêm programas para sabotar redes de computadores de órgãos
públicos e empresas privadas. Desenvolvidos por programadores vinculados à
célula carioca do grupo hacker Anonymous, esses programas já circulam na
internet.
Os Black Blocs brasileiros seguem uma onda
mundial. São uma manifestação tardia de um fenômeno que tem origem na Alemanha
dos anos 1980 e, gradualmente, começou a aparecer nas manifestações de ruas
pelo mundo. Primeiro, nos protestos antiglobalização dos anos 1990. Depois,
como parte das mobilizações que se seguiram à crise econômica de 2008. Agora,
quebram vitrines e enfrentam a polícia no Brasil. O cientista político
canadense e ativista Francis Dupuis-Déri, da Universidade de Québec, afirma
que os Black Blocs são mais uma tática que um movimento político, mais uma
demonstração de rua que uma ideologia. Envolveram-se em protestos no Canadá, na
Grécia, na Espanha e no Egito. "Estão se convertendonum fenômeno global,
como a crise econômica", diz Dupuis-Déri... Em dez anos, 10 mil foram
presos, a maioria em protestos antiglobalização. A cadeia pune a violência e
pode coibi-la, mas não ajuda a compreender o que eles querem, quem são, o que
pensam, como se organizam - e, principalmente, quem os financia. Por João Gabriel de Lima e Hudson Corrêa para a revista Época no.
87, novembro 2013